A PRERROGATIVA DO TEMPO
"Examina com cuidado a experiência dos antepassados;
porque somos uns ignorantes das coisas de ontem,
nossos dias sobre a terra passam como a sombra."
-jó 8,8s-
Há uma coisa que só o tempo pode dar.
É evidente, o ter vivido.
A vida é a grande mestra.
O que ela dá é insubstituível, a experiência.
E a experiência, aliada ao discernimento,
que é dom do espírito,
se manifesta com outro precioso dom,
o da sabedoria.
Dessa sabedoria,
que vale "vale mais que as pérolas",
-jó 28,18-
encontramos elogios sem conta nas escrituras,
sobretudo no antigo testamento.
A graça era então desconhecida;
a sabedoria era,
se assim podemos dizer,
o seu substituto provisório,
o desbravador dos seus caminhos,
o seu arauto, a revelação velada do espírito,
o resumo de todos os seus dons;
"Eu, a sabedoria,
sou amiga da prudência,
possuo uma ciência profunda.
O temor do senhor é o ódio do mal.
...Meu é o conselho e o bom êxito,
minha a inteligência, minha a força.
...Amo os que me amam.
Quem me procura encontra-me."
-pr 8,12-14.17-
Se Jó nos diz que
"A sabedoria pertence aos cabelos brancos,
a longa vida confere a inteligência;"
acrescenta que,
"Em Deus residem a sabedoria e poder;
Ele possui o conselho e a inteligência."
-jó 12,12s-
Parece-nos isso significar que toda a experiência da vida
pouco adiantará a nós e aos outros,
se faltar essa experiência "divinizada" em nós
pela sabedoria,
o "dom perfeito" que "vem do alto".
-tg 1,17-
Se faltar tudo o mais, com ela temos
"a riqueza e a glória, os bens duráveis e a justiça".
-pr 8,18-
Não conhecemos nós pessoas idosas,
muitas vezes destituídas de bens terrenos,
perfeitamente serenas e felizes,
porque possuem essa sabedoria?
É a sabedoria que, juntamente com a experiência,
nos ensina a colocar os bens da nossa vida
cada um no seu devido lugar,
a não nos agarrarmos demasiado ao que passa,
ao que é perecível,
a sermos objetivos quanto às coisas que nos rodeiam,
e a darmos a cada uma o seu real valor.
Então, os anos não farão de nós infelizes egoístas,
armazenadores de ninharias,
como lastimamos, tantas vezes, conhecer.
"O saber vem, a sabedoria fica".
Ele vem como vai.
Ela permanece.
Ela colore a vida,
deixa transparecer a eternidade.
"A vida, como um vitral multicor,
Tinge a alvura radiosa na eternidade".
-shelley, adonais-
Não diríamos que tinge. Mas torna acessível à nossa vista,
neste mundo, a sua resplandecência.
Nas coisas mais insignificantes,
essa sabedoria,
que se confunde com a graça,
nos faz ver algo que nos transporta ao infinito.
Vejo neste momento, um beija-flor
esvoaçando num arbusto do jardim.
Não admiro só a sua beleza, a sua fragilidade,
a sua delicadeza.
Há algo mais nesse espetáculo,
algo nesse infinitamente pequeno que canta em mim
o infinitamente grande,
que me dá uma alegria íntima, profunda,
porque tudo isso é meu
para gozar agora, nesse instante,
e nada tem a ver com os anos que já vivi, e
vai se prolongar em reverberações de beleza sem fim,
por toda a eternidade.
É essa a sabedoria,
a experiência das coisas,
o sentimento do duradouro,
a harmonia dos valores,
que os anos nos devem trazer e
que devemos transmitir aos que vêm atrás,
aos que chegarão aonde nós chegamos, e
que deverão passar adiante o facho da verdade.
Experiência a transmitir,
não como o mestre que ensina uma lição,
mas como a carícia de mão amiga,
que espera reciprocidade.
Só assim,
a experiência dos que viveram mais
será aceita pelos que viveram menos.
Estes,
seguros de terem o mundo e o presente nas mãos,
-- não o futuro, como se dava antes, --
sentem-se com maior poder e mais saber
para ir ao volante da história.
Deixemos que o provem.
Errando,
aprenderão à sua custa,
e isso os tornará mais sábios,
os dignificará e os fará crescer.
Mas não podem prescindir
da experiência dos que viveram.
Só que esta tem que ser oferecida com amor,
com estímulo, com humildade sincera.
A prepotência, a inveja,
as incriminações nunca serão aceitas.
Só o amor,
"tudo desculpa,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta".
-1cor 13,7-
Toda a vida recebemos,
e recebemos gratuitamente.
Ainda estamos recebendo.
Mas a quarta vigília
é tempo de retribuição ao senhor,
na pessoa dos irmãos tudo o que a vida nos deu.
E ela nos deu,
assim o esperamos,
-- se procuramos viver em Deus,
pedindo sempre que
"nos indique o caminho que devemos seguir e
o que devemos fazer"
-je 42,3-
-- a experiência divinizada,
que podemos e devemos comunicar,
a maioria das vezes não por palavras,
mas por gestos de amor,
por atitudes de prudência,
pelo exemplo de toda uma vida,
lago tranquilo em que Deus se espelha.
Essa experiência levará a fazer,
mais do que a dizer.
Na convicção de que
"a noite vai adiantada, e o dia vem chegando"
-rom 13,12-,
a nossa serena preocupação será
passar "fazendo o bem"
-at 10,38-
Como é persuasivo e provocante
o pensamento,
"... e quando nada mais conseguirmos realizar,
o bem e o belo que fizemos
continuarão sem nós o seu movimento",
-marie noel, notes intimes-.
Quem poderá dizer
até onde irão as vibrações de um som?...
Temos que ir dando constantemente de nós,
como a fonte
que dá generosamente.
Oculta entre as pedras,
sem pedir retribuição. Ignora que
irá tornar-se rio caudaloso,
que irá
desembocar no infinito...
Assim temos que dar da nossa vida,
da nossa experiência, da nossa sabedoria,
tirando do nosso
"tesouro coisas novas e antigas"
-mt 13,52-
Que importam, então,
os anos,
se cada instante
está sendo semente de
eternidade,
se estamos semeando
para outros colherem,
se o grãozinho que hoje plantamos
será amanhã árvore frondosa,
para outros gozarem da sua sombra e
dos seus frutos!...
Este pequeno poema,
parafrazeando o pensamente de Goethe,
"Alma do homem,
como te assemelhas à água!"
expressa e amplia a nossa idéia:
"Ser a lagoa calma, transparente,
sem ruga, bruma ou véu,
em que se espelha o céu.
Ser poço fundo, dócil, cristalino,
que acolhe reverente
a imagem do divino...
Ser córrego liberto, generoso
que nas alturas bebe
e dá o que recebe.
Ser mar, oceano imenso, tormentoso,
dizendo à terra, em turbilhão e em grito,
seu sonho de infinito!"
Mas quereríamos esse mar da quarta vigília poderoso,
sim, mas nunca tormentoso.
É a idade da paz,
findas as agitações das outras vigílias.
O poemeto exprime um ideal para toda a vida, mas
mais ainda, para essa idade.
O marulhar das águas,
em nós,
deverá ser o próprio "espírito",
água viva que nos inundou em nosso batismo,
e no qual procuramos
viver imersos.
Será, então o tempo de dizer, como Inácio
no barco a caminho do martírio,
"Minhas paixões foram crucificadas.
Já não há em mim apetite pelas coisas da terra.
Uma água viva murmura dentro de mim,
dizendo: Vem para o Pai".
Não importa a vigília em que estamos.
Cada instante nos deve levar ao Pai.
Por Cristo.
No Espírito Divino.
Para isso nos é dada a vida.
-r128n-
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